Eu me comprometi a resenhar tudo o que assistisse no cinema. E, bem, já faz mais de um mês que assisti Argo. Gostei do filme e comecei a resenha várias vezes e, ainda assim, parei a redação sem levá-la. Tanto que esqueci o texto no computador de casa. Só que o ano já vai terminando e eu preciso resenhar Argo. Eu realmente não gosto do Ben Affleck ator no seu início de carreira, o considerava insuportável e concordava com as piadas que o seriado South Park adorava fazer com ele. Assim, olho para o Kevin Reynolds hoje e lembro do Bem Affleck de dez anos atrás. Por conta disso, misto de experiência e de preconceito, tinha evitado vários de seus filmes, os que ele dirigiu antes. Só que acredito que o moço achou seu caminho. Acredito que ele se achou.
Argo é um filme difícil, porque toca, ainda que trinta e poucos anos depois, em uma das feridas abertas do orgulho americano: a Revolução Islâmica Iraniana. A outra, vocês devem já ter imaginado, é Cuba. Por conta disso, e do tom equilibrado do filme, talvez Argo termine sendo preterido nas premiações mais importantes, vejam bem, não nas mais sérias. Para quem não sabe do que se trata o filme, Argo se baseia em um livro de 2007, escrito pelo ex-agente da CIA Tony Mendez (Ben Affleck, na película), que revelou detalhes desconhecidos sobre um incidente conhecido como "Canadian Caper", um desdobramento da crise dos reféns da embaixada americana em Teerã. Um grupo de seis diplomatas americanos conseguiu fugir da embaixada quando ela foi invadida em 4 de novembro de 1979 e se escondeu na casa do embaixador canadense. Segundo se sabia na época, os canadenses se arriscaram para retirar os diplomatas do Irã muito antes do fim da crise na Embaixada Americana. O que se soube depois é que tudo fez parte de um plano da CIA que envolvia cinema, uma enorme cara de pau, coragem e muito desespero. Deu certo, incrivelmente, deu certo!
Confesso que mesmo com algumas leituras sobre a Revolução Iraniana, que começou liberal e terminou islâmica, eu não conhecia o incidente que deu origem ao filme. Gosto de ler sobre o Irã, compreendo os rumos tomados pela Revolução, leio as memórias de mulheres que viveram o momento (*sugiro Persépolis e Lendo Lolita em Teerã*), tenho uma amiga iraniana de anos, gosto muito de cinema iraniano, e a minha lembrança mais antiga de telejornal é da guerra IrãXIraque. Meu irmão era novinho na época e a matéria falava que estavam enviando meninos de treze anos para a guerra... Eu imaginei que em alguns anos meu irmão poderia ser como um deles... Minha imaginação sempre foi muito fértil... Enfim, mas não conhecia o caso dos reféns. Fui ver o filme sem grandes leituras prévias e, ao longo da película, fiquei imaginando que tudo poderia ser invenção... Não era!
Cinema não é história. Filmes históricos são melhores retratos históricos do momento em que são feitos, do que do passado. Se, por exemplo, Bem Affleck fosse um reacionário, Argo poderia ser tão raso e desprezível quanto um Guerra ao Terror. Mas não é. A abertura do filme foi genial ao usar storyboard – quadrinho, enfim – para contar o antes, o como os americanos (*e britânicos*) patrocinaram a queda de um governo nacionalista (*o que aconteceu com Mossadeh poderia ter ocorrido com Getúlio Vargas*) para conseguir controlar a produção de petróleo do país. O governo do Shá, corrupto, violento, mas, ao mesmo tempo, muito progressista se pensarmos em direitos das mulheres, não agradava muita gente. Nem liberais democratas, nem comunistas, muito menos os religiosos xiitas. Esse governo caiu, e os rumos da Revolução caminharam para um islã militante. De novo, embora muitos não queiram ver, as mulheres tomaram grande parte na Revolução. Argo ganhou muitos pontos comigo ao mostrar essas mulheres ativas na derrubada de um regime do Shá, participando do cerco à Embaixada, como porta-vozes das exigências do novo governo aos americanos. Mesmo a Revolução Islâmica não conseguiu mandar as mulheres persas – iranianos em sua grande maioria não são árabes – para casa. Perder de vista o engajamento de muitas mulheres na manutenção do próprio regime e não somente contra ele ou por reformas, é um erro muito grande. Isso sem falar do nacionalismo que mobilizou muita gente durante a Revolução.
Não pensem, no entanto, que Argo é um documento de época, mas o filme buscou captar o momento, o furor revolucionário e conseguiu muito bem. É excelente cinema na medida em que ele consegue nos enganar, nos convencer utilizando imagens de época, cenas de estúdio, gravações feitas em outras localidades. Argo é cinema na medida que trabalha muito bem com o faz de conta, a dissimulação que nos envolve. Porque, bem, todo o resgate foi feito em cima de uma mentira: acanadenses queriam gravar um filme de ficção científica – o tal Argo – no Irã. Um produtor (Alan Arkin), um maquiador famoso é mobilizado (John Goodman), gente confiável. Um elenco é escolhido e não sabe que se trata de uma mentira... E, por mais absurdo, e isso o filme nos lembra o tempo inteiro, a fraude durou tempo suficiente para enrolar os membros do regime. Eis o poder do cinema, especialmente do cinema norte americano. E como o tal agente teve a idéia? Vendo o seriado de TV ruim do Planeta dos Macacos. Genial! E o maquiador, John Chambers, é exatamente o dos filmes e seriados Planeta dos Macacos e uma das melhores personagens de Argo. A própria vida do sujeito já daria outro filme...
Sabe a grande falha do filme? Algo imperdoável? Jack Kirby– o grande quadrinista – fez os storyboards. E, caramba! Kirby é figurante! Eu nem o identifiquei! :( Depois que descobri quem tinha feito os desenhos só conseguia pensar “Céus! Esses storyboards valem ouro!!!!!!”. Só que são tantos acertos em um filme que poderia virar uma patriotada que Argo está entre as melhores coisas que assisti este ano no cinema. Um filme bem realizado, que consegue fazer-nos ter simpatia pelos diplomatas, torcer pela sua salvação, e não nos obriga a ver os Estados Unidos e sua política como positiva em si mesma. Ela é suja e a Revolução com seus prós e contras é desdobramento dela. E, bem, é um filme para gente grande no meio de tantas produções que nos tratam como crianças ou idiotas.
Como sempre comento, não posso deixar passar: sim, o filme cumpre a Bechdel Rule. Ainda que o filme tenha homens em papéis de destaque, algo compreensível, já que presidente, chefia da CIA, maioria dos diplomatas e agentes, eram homens, ele coloca as mulheres em cena. Não só as iranianas engajadas na Revolução, mas as diplomatas, a esposa do embaixador americano, a empregada da casa... A maioria tem nome, conversa entre si e não só sobre homens. Ah, sim! E para quem não sabe, a Crise dos Reféns durou 444 dias, todas as investidas americanas para resgatá-los terminaram em fiasco e humilhação, e os democratas terminaram perdendo a Casa Branca. Nesse sentido, o resgate dos seis foi brilhante e um grande sucesso, ainda que construída em cima de uma idéia louca. Pena que os autores da façanha não puderam contar. Acho que esta é a parte que deve ter doído mais! :P
Espero que Argo receba vários prêmios e que seja lembrado como um dos grandes filmes de 2012. Não somente como um filme político, mas como uma homenagem ao cinema e sua capacidade de encantar e enganar, de nos arrancar da realidade e nos puxar para ela. Recomendadíssimo e ainda está em alguns cinemas. Minha demora em escrever era fruto do não saber por onde começar sem entregar a trama, sem me alongar demais... Enfim, é isso. Espero que não seja a última resenha e 2012, mas periga ser.