Umas semanas atrás, ganhou grande atenção na internet um belo comercial estrelado por garotinhas que chutavam as imposições de gênero para escanteio, isto é, a ditadura do rosa e lilás, a história de “você é uma princesa”, e usavam o que tinham em mãos para construir uma máquina de Rube Goldenberg. Não sabia o que era isso, mas, segundo a wikipedia, trata-se de “uma máquina que executa uma tarefa simples de uma maneira extremamente complicada, geralmente utilizando uma reação em cadeia”. É um lindo comercial que se chama Empoderando as Meninas para Construir o Futuro (Empowering Girls to Build the Future).
Se você não se sensibiliza, talvez nunca tenha atentado para a geografia de uma grande loja de brinquedos, que criou um nicho rosa e lilás com bonecas – Barbies, Princesas da Disney, Bebês que sujam fraldas de verdade, Monster High em saltos altíssimos e roupas curtíssimas, etc. – e todo o aparato doméstico – fogões, kit de serviços gerais, lavadoras de roupa, e por aí vai. Algumas dessas preciosidades trazem estampadas as princesas da Disney, que devem ter sido escravizadas depois do casamento, ou será que casaram para continuar limpando e cozinhando? Vai entender. Há também bizarras cabeças de boneca para maquiar e/ou pentear que podem ser arrolados como brinquedos que estimulam a criatividade, junto com instrumentos musicais de brinquedo e kits ligados às artes culinárias. Se pensarmos que se trata de um estímulo para um futuro profissional, temos como profissões femininas cabeleireira, cantora/musicista, cozinheira (*ou chef, se deixarem*), fora caixa de supermercado, porque sempre há obsoletas máquinas de mercado entre os brinquedos para meninas.
Se vamos para o lado dos garotos, vemos kits de mecânica ou de ciências (*alguns trazendo fotos de meninas e meninos. Há esperança! Amém!*) mesmo para menininhos que mal se colocam de pé. Há uma profusão de brinquedos agressivos, verdade, mas a maioria dos brinquedos criativos – desde jogos de blocos para bebês, microscópios até kits elaboradíssimos para montagem de robôs e outras máquinas – estão do lado dos garotos. Isso sem falar do Lego, analisado esplendidamente pela Anita Sarkeesian em dois vídeos (*1-2*), que se gendrou com os kits de montar mais arrojados para garotos e o infame Lego Friends com bonequinhas para meninas, muito similar à Polly da Mattel. As crianças brincam com aquilo que lhes é oferecido e muitos pais ficam ansiosos por dar aos seus filhos e filhas aquilo que o mercado apresenta como adequado a sua idade e sexo biológico.
Já vi pais dizendo que suas filhas “amam rosa” e não aceitam nada de outra cor. Nada contra o rosa, ou o lilás, mas pergunto sempre se eles não entupiram a bichinha desde o berço com coisas cor de rosa. Sendo mãe de uma menina, digo que e quase impossível fugir do rosa-lilás quando se trata de roupas de bebês. Como minha filha não tem orelhas furadas e não coloquei nenhum laço gigantesco em sua cabeça, basta colocar algo azul, ou mesmo amarelo, que seu “belo menino” recebe muitos elogios. Dia desses, nem chamando Júlia de “mocinha”, o senhor no elevador se convenceu que era uma garotinha, afinal, ela não estava nem de rosa, nem de lilás, nem tinha brincos, e ficou chamando a menina de rapaz, rapazinho. Uma graça. Enfim, antes que me desvie muito, por que temos tão poucas meninas interessadas em ciência? Podemos procurar uma das razões nos brinquedos. Os discursos, a mídia e outros fatores, alguns ocultos, também desempenham papel importante. É aquilo, você corta as asas de um pássaro (*as pontas, para dificultar a fuga*) e depois reclama dizendo que o bicho não quer voar.
Dentre os fatores ocultos, estão a visibilidade para as mulheres cientistas. Elas existem, mas, mesmo nos livros de História da Ciência, ocupam papel marginal, isso, claro, quando estão lá... Lembro de um programa Globo Ciência que assisti muitos anos atrás sobre o tema e que mostrava uma foto de uma expedição científica que viera ao Brasil nos início do século XX. A tal foto, que estava em um livro de História da Ciência, trazia o nome de todos os homens, só que havia três mulheres (*salvo má lembrança*) na foto. Esposas, talvez? Não, eram cientistas. Uma delas a líder, sim, líder, da expedição. Por que invisibilizá-las? Simples, consciente, ou inconscientemente, para reafirmar que ciência é coisa de homem. Mas vamos aos exemplos: Você sabia que o Eniac, o primeiro grande computador, desenvolvido em 1943, foi programado por seis mulheres? Você sabia que a matemática Ada Lovelace (1815-52) é considerada a primeira programadora da História? Você já ouviu falar de Hipátia? Ou das medievais Trotula e Hildegard de Bingen? Ou sabia que Marie Curie foi a primeira pessoa a ganhar dois prêmio Nobel, um de Física e um de Química? Eu poderia buscar outros nomes... Muitos nomes... Mas vamos aos fatos...
O site The Mary Sue trouxe dados de um estudo feito na Inglaterra que aponta que as cientistas mulheres recebem menos verba do que seus colegas homens. Entre 6000 verbas concedidas, menos de 1/4 foram para pesquisas feitas ou lideradas por mulheres. Além disso, cientistas mulheres recebem 43% menos dinheiro do que seus colegas homens... Um... Será que as propostas de pesquisa dos homens são melhores? Será que eles são melhores cientistas? Ou será que o fato de alguém ter útero e ovários (*ou talvez, não*) faz de você uma cientista menos capacitada logo de saída. Quais os sacrifícios que uma mulher cientista precisa fazer para conseguir verbas, cargos e respeito na Academia? Será que é um fenômeno meramente britânico (*Há!*) ou acontece em outros lugares do mundo? Será que continuaremos celebrando mulheres-exceção, sem perceber que as coisas poderiam ser diferentes? Será que nossas meninas poderão sonhar um dia em um futuro melhor caso escolham carreiras científicas, especialmente na área das Exatas? Eu queria poder sonhar...
Mas falei em mídias e discursos. Pois é, vamos fechar este post (*antes que Júlia me requisite*) falando de quadrinhos, animação e cinema. Kevin Smith – cineasta, quadrinista e nerd – entrevistou Paul Dini – roteirista de quadrinhos e produtor de séries animadas para a DC, principalmente – e eles conversaram sobre a falta de super heroínas com filmes solo e da discriminação que a audiência feminina sofre por parte dos estúdios e por aí vai. Enfim, Paul Dini diz com todas as letras que, para os executivos da TV, as meninas não interessam; lamentam que Teen Titans tenha atraído tanta audiência feminina; e afirmam de várias formas que supers e seus produtos são e precisam continuar sendo para garotos (*pequenos*) ou com um gosto pelo humor fácil e rasteiro, apesar das evidências do interesse feminino. Kevin Smith perguntou de forma direta “WHY? That's 51% of the population." (POR QUE? Trata-se de 51% da população.). Paul Dini roda, roda, para dizer que meninas não compram brinquedos, quer dizer, não compram os mesmos brinquedos que garotos, e que meninas querem princesas e que eles não vão oferecer princesas... Segundo ele, os executivos chegaram a dizer que meninas não são tão espertas quanto os meninos, que elas estão sempre atrás e, bem, precisam estar mesmo... Em suma, por que excluir mais da metade da população? PORQUE SIM!!!! E vem fã-boboca dizer que a DC e outros são capitalistas e, bem, não iriam jogar dinheiro fora. Tente ver a coisa pelo ângulo certo, o machista. Leiam dois textos analisando as falas de Dini e Smith: AQUI e AQUI.
Existe uma política de exclusão que se impõe ao econômico. Áreas que são consideradas masculinas e uma delas é o mundo dos quadrinhos, especialmente de heróis. Incomoda, portanto, quando as garotas ligam o f***-** e vão consumir aquilo que não foi feito para elas, quando se metem no universo dito masculino e querem dar palpite, participar. Lembro do gênio no documentário Comic Book Superheroes Unmasked que disse não entender o carinho das mulheres e meninas pela Mulher Maravilha, personagem criada para o público gay masculino... Por onde começar a comentar essa fala??? Muitos dos homens ligados à indústria de quadrinhos nos EUA queriam que as mulheres ignorassem seus produtos, infelizmente, para eles, elas não fazem isso. Daí, claro, é preciso dizer que elas é que se excluem (*pense nas Comic Shop... Veja The Big Bang Theory...*), que elas vão ver filmes de supers no cinema para acompanhar namorados e maridos ou pelos atores (*Ora, por que não ir por eles TAMBÉM?*).
Enfim, da próxima vez que você vier com o papo de que mulheres e meninas não lêem comics – não estou falando de mangá ou quadrinhos alternativos, claro – porque não querem, pense em todo o esforço que escrotos como os executivos que Paul Dini comenta na entrevista fazem para afastar esse público. E, claro, de como deve doer quando esse mesmo público se interessa pelo produto apesar de, ou reclama dos rumos das personagens (*vide meu post sobre a Estelar*) ou vão ler mangá. Ou seja, está aí a prova de que não é nóia de feministas vitimistas, a coisa é real, concreta e cruel. Destrói carreiras, dificulta outras, excluem as meninas, embota os sonhos. É esse mundo que precisamos mudar, trabalhar duro para erodir pelo bem das gerações futuras.