Com uma semana de atraso, escrevo a review de Cinderella, a versão live action caríssima da Disney. Poderia simplesmente dizer que não tive tempo/condições de escrever o texto. Seria verdade, claro, no entanto, se tivesse gostado do filme, daria um jeito qualquer de sentar e redigir. Só que não gostei. Apesar de ser um grande espetáculo visual, o figurino, especialmente, é deslumbrante, o filme é convencional, utiliza-se de um humor bobinho que normalmente não funciona, musicalmente pobre, e não consegue nem passar perto da qualidade do desenho original. Decepção mesmo.
Se você conhece a história da Cinderella, este resumo talvez pareça desnecessário, mas peço que vocês dêem uma olhada, também, na resenha que fiz da animação de 1950, lá discuto as variantes do conto, que é bem antigo. De cara, digo que vou discordar bastante da tese de que este filme foi uma refilmagem quase fiel do desenho animado. Cinderella começa mostrando a felicidade que era a vida em família da menina Ella, sua mãe (Hayley Atwell) e seu pai (Ben Chaplin). Diferente do desenho, pai da mocinha era um comerciante e, não, um aristocrata. A mãe de Ella a ensina desde muito cedo a acreditar em mágica e ser corajosa e gentil. Tudo ia muito bem até que a mãe de Ella adoece, é condenada pelo médico e morre. Pai e filha continuam juntos e se amando muito, os anos passam e a menina cresce e ganha as formas de Lily James.
Pai e filha viviam muito bem, até que ele anuncia sua intenção de se casar com uma distinta viúva – Lady Tremaine (Cate Blanchett) – que tem duas filhas Drisella (Sophie McShera) e Anastasia (Holliday Grainger). Em nenhum momento, o pai de Ella parece se casar pelo bem da filha, aliás, o filme nem se esforça em dar a entender que o fizera pelo seu próprio bem. Tão logo entram e cena, as três se mostram vulgares e insensíveis. Tremaine parece viciada em jogo e ouve quando o pai de Ella fala com carinho e saudade da mãe morta da menina e que ela, a filha, era sua única razão de viver. Assim como na maioria das versões de Cinderella, a tragédia se abate sobre a jovem. O pai morto, os criados dispensados e Ella convertida em criada...
A moça leva uma vida miserável, as irmãs lhe batizam de Cinder (cinza de fogão)+Ella, porque não raro, para escapar do frio do sótão, ela dorme em um borralho. Um belo dia, a moça encontra com o príncipe (Richard Madden) na floresta, sem saber quem ele é. O moço se diz um “aprendiz” que trabalhava no palácio. O rapaz, que estava sendo pressionado a casar com uma rica princesa, aceita que se faça um baile para que selecione uma noiva. Sua condição, que toda e qualquer moça possa vir. Ele deseja reencontrar Ella. Já a jovem sonha em revê-lo, mas seu plano de ir ao baile é frustrado pela madrasta... Daí, aparece a fada madrinha (Helena Bonham Carter) e o resto é basicamente o que vocês já conhecem...
Ao saber que Kenneth Branagh iria dirigir o filme, imaginei que esta versão de Cinderella seria grandiosa, interessante. Confesso que não consigo ver a personagem em Lily James, mas acredito que a culpa é minha, já que olho para ela e vejo a espevitada Rose de Downton Abbey. Fato é, no entanto, que ela tem um bom timing para comédia e quase vi um pouco da Rose na cena do baile. Os olhares trocados com o príncipe, as frases que sugeriam algum duplo sentido, foi como se ela escapasse da chatice dessa Cinderella versão 2015.
A nova Cinderella não se parece muito com a de 1950, que conseguia se indignar, nem que fosse com o gato Lúcifer, que tinha um quê de desastrada e, bem, que cantava! Eu queria que essa Cinderella tivesse pelo menos duas músicas cantadas, "A Dream Is a Wish Your Heart Makes" e "Bibbidi-Bobbidi-Boo (The Magic Song), ambas só aparecem nos créditos. Enfim, não precisava ser um filme feminista, mas poderia ser bem mais criativo e ousado. Cortar músicas, confiscar as vozes os animais, eliminar o cachorro idoso Bruno e seus arranca-rabos com o gato Lúcifer, não ajudaram o filme.
Algo que me incomodou muito, mas muito mesmo, foi a forma vulgar e histriônica que deram para Lady Tremaine. A madrasta de Cinderella é uma das grandes vilãs da Disney, fria, cruel, cheia daquela grandeza aristocrática que quer se impor mesmo na miséria. A Tremaine de Cate Blanchett me lembra Cruella Cruel... Sério, o figurino é muito interessante, o dela, então, é meio atemporal, flertando com a década de 1940 do século XX, mas a personagem se apequenou. Tive alguma pena dela, compreensão de sua mágoa, quando ela ouve o marido conversando com Ella. Ela é uma excluída. A partir daí, poderiam ter adensado a personagem, mas ela continuou artificial. As irmãs, bem, suas cenas tem como objetivo ser alívio cômico, eu só as achei chatas mesmo. Duas boas atrizes desperdiçadas. No mais, ninguém jamais conseguirá me convencer que Sophie McShera não é linda e graciosa. Escolheram mal a atriz para o papel, enfim...
Tentaram inovar? Sim, no príncipe, pois o original era somente um lugar, a tábua de salvação da heroína, não tinha sequer nome. O novo se chama Kit, tem um pai amoroso (Derek Jacobi), mas muito doente, que tem urgência em vê-lo casado (*percebem a ausência da mãe de ambos? Poderiam ter mudado esse aspecto...*), um capitão da guarda que faz as vezes de aia e conselheira (o impressionante Nonso Anozie) e um grão-duque corrupto (Stellan Skarsgård) que quer casar o moço com uma princesa de nome latino. Enfim, dão uma personalidade ao rapaz, o colocam quase na situação da típica mocinha que é obrigada a casar por pressões sociais. Dá para arrancar alguma reflexão disso? Bem, como o filme assume um tom bobinho, é difícil, confesso que não vi nada ali que não tivesse sido melhor trabalhado antes, seja no muito superior Para Sempre Cinderella, seja até na Bela Adormecida da própria Disney.
Há certa inversão dos papéis de gênero quando pensamos o príncipe, verdade, mas só quando a pessoa não está a par da pressão que jovens príncipes deveriam sofrer para casarem e procriarem com as parceiras certas. A maioria dos primeiros casamentos de jovens aristocratas não dependia de sua vontade, afetos ou luxúria. Henrique VIII, que só é retratado adulto e querendo um segundo casamento, não era a regra, mas exceção. Houve príncipes de monarquias muito poderosas que tiveram que casar por motivos bem esdrúxulos. Por exemplo, Luís XV, único homem restante do ramo principal de sua família, teve que se casar com a única princesa da Europa em idade parelha a dele, pois precisava garantir linhagem. A noiva desejada, uma princesa espanhola, rica, com boas conexões, tinha somente 8 ou 9 anos, a escolhida terminou sendo uma princesa polonesa, pobre, tinha quinze anos e podia começar a parir logo. E foi bem assim que aconteceu...
De resto, a idéia do encontro anterior ao baile, que poderia até ter rendido mais e não ficar na discussão sobre caçadas que serviu para ilustrar o caráter forte e a bondade de Ella, blá-blá-blá, já tinha sido vista antes e de forma muito mais bonita em A Bela Adormecida. O fato é que na maioria dos contos de fada mais clássicos, Cinderela, A Bela Adormecida, Branca de Neve, o príncipe é o escape da mocinha, não há tempo para as personagens se conhecerem. A Disney rompeu com isso em 1959 ao inserir o encontro de Aurora e Felipe e, agora, reaproveitou a idéia em Cinderella. Os dois se apaixonam, o baile vira uma confirmação, e o sapatinho é detalhe...
Sim, a mudança mais significativa é na ordem dos acontecimentos em relação ao sapato. Não detalharei. Achei positivo encarceramento de Ella na torre ser mais longo que na animação (*olha a torre, símbolo fálico mais do que tradicional, e o príncipe libertador aí...*), a trama da Madrasta e do Grão-Duque foi forçada, os desdobramentos sem relevância, e, bem, cortaram a operação de salvamento feita pelos bichinhos, até, porque, não havia Bruno... Falando em bichinhos, só conseguia lembrar da cena de Princesa Sophia, a série infantil animada da Disney sobre uma princesinha em treinamento, na qual os bichinhos dizem que não gostam das princesas, eles gostam da comida...
Helena Bonham Carter aparece pouco e sua aparição toma de empréstimo uma seqüência da Bela e a Fera... Mesmo com toda a riqueza visual, eu esperava que a seqüência da fada madrinha fosse fiel ao desenho. Não foi. A parte da abóbora crescendo foi mesmo constrangedora. Humor que não funcionou outra vez. Já a parte do baile foi linda. Imagino que algum livro com o figurino deve ter sido laçado. Queria ver as roupas das princesas orientais em detalhes. Ficou tudo de muito longe. Já os bordados nas roupas dos homens eram deslumbrantes. Imagino que a indicação a melhor figurino seja certa. A estatueta do Oscar nesse caso não seria exagero.
De resto, o filme cumpre a Bechdel Rule? Sim e fácil. Várias personagens femininas que conversam entre si e que não falam só do príncipe ou do pai de Ella. O filme é feminista? Não. Aliás, durante exibição já tinha compreendido porque vários artigos de sites americanos apontavam que Cinderella era um passo atrás em relação à Malévola, Frozen e Valente. Eu não tenho como discordar. Agora, preocupam-me as versões anunciadas de A Bela e a Fera e Mulan. Elas vão olhar para frente, ou andar para trás? Emma Watson como Bela deve pedir um roteiro bem feminista, vamos esperar...
É isso. Não gostei do filme mesmo. Compraria o guia visual, mas não o Blu-ray. A melhor coisa da sessão foi o clipe fofinho de Frozen. Uma gracinha mesmo. ^_^ Saí de lá pensando que ainda preciso assistir esta animação e com vontade de rever Para Sempre Cinderella, a melhor versão do conto de fadas que eu já vi e a mais feminista. Se reassistir, prometo resenhar.