Algumas pessoas que estão respondendo a pesquisa do Shoujo Café vêm pedindo para que eu produza mais postagens feministas, quer dizer, textos direcionados mesmo. Enfim, o feminismo do blog normalmente está imbricado nos meus textos comuns, afinal, como feminista, não me furto de me colocar como tal. Eu não sei se quero tornar o Shoujo Café um lugar para postagens semanais mais específicas, no entanto, o caso da moça de Minas Gerais– aquela condenada à morte por um juiz, porque, bem, engravidou novamente – me obriga a mais algumas palavras. Não sei se este texto vai ficar bem estruturado, aliás, nem sei se gostei do seu resultado final. E é preciso dizer o que me motivou a escrever não foi simplesmente a falta de solidariedade e/ou a visão Pollyana de alguns (*“Ore e confie que Deus fará o milagre!”*), mas o que algumas pessoas escreveram no post do site da Lola. Como eu iria ter que fazer vários comentários, melhor produzir um texto próprio mesmo. A questão da contracepção, especialmente, a culpabilização do parceiro da moça, por não se vasectomizar, ou a dispensa do mesmo, porque, afinal, ele pode querer ter filhos depois, foi o ponto de partida deste texto.
Olha, uma das coisas mais certas nessa nossa sociedade, que vê a maternidade como destino de todas as mulheres, é que quem diz conscientemente, não nos arroubos juvenis, que não deseja ter filhos e quer casar ou ter um relacionamento fixo, é uma pessoa estranha, talvez doente, ou monstruosa. E mais, se uma mulher, agindo contra a lei, se esteriliza, essa é monstro mesmo. Que direito tem ela de tirar ovários e útero? De fugir do seu dever de passar por gravidez e parto? Lembro que em uma novela do Manoel Carlos havia uma mulher ciumentíssima do marido interpretada pela Giulia Gam, que era um monstro, porque, bem, ela se esterilizou, porque não queria ter filhos, já que queria se concentrar só no marido, razão de seus pensamentos. Obviamente, havia outros ingredientes, o pobre homem foi enganado, atitude cruel e desonesta, ela o atormentava, mas lá no fundinho, seu crime maior foi não querer assumir seu destino. E, claro, ela era uma personagem vilanizada, e não me lembro de outra personagem que tenha feito algo semelhante em novela alguma.
Curiosamente, mulheres são pressionadas por suas famílias e parceiros a se esterilizarem. Trata-se de colocar em primeiro lugar o bem da família, o planejamento econômico. 40% das mulheres em idade reprodutiva no Brasil foram esterilizadas. Assim, não raro, moças jovens são empurradas para uma laqueadura – que pode ser reversível, ou não, mas é uma operação de médio porte – para que o núcleo familiar se estabilize nos dois filhos economicamente aceitáveis. Como em um “causo” que contarei abaixo, é até admissível que um homem diga que não vai se vasectomizar, porque, bem, seu casamento pode acabar, podem todos morrer, e ele pode querer “recomeçar”. Mas em nossa sociedade machista, nós, mulheres, somos socializadas para acreditar que um casamento é para sempre. Conhecem alguma mulher que tenha dito na cara de seu companheiro ou de sua família ou amig@s que não vai fazer laqueadura, porque pode, sim, querer ter filhos no futuro caso seu casamento acabe? Pois é, uma das grandes filas do SUSé de mulheres em seu segundo casamento, ou mais, desejando uma reversão... Para algumas, será muito tarde. São meses de espera, e algumas passaram dos 35 anos... Esterilizaram-se com vinte e poucos anos, em alguns casos, burlando a lei. Aliás, a lei é outra graça.
Nenhuma mulher (*ou homem*) pode se esterilizar pela rede pública se não tiver mais de 25 anos e/ou dois filhos nascidos vivos e, quando casad@, assinatura do cônjuge. Obviamente, é possível autorização especial... Mas o “especial” já aponta para uma possível demora. E, claro, por “especial” não estão incluídas as mulheres que decidiram, depois de refletir sobre o assunto, que não querem passar pela experiência de gerar um filho biológico. Imagina deixar essas mulheres (*imorais*) transarem sem risco de engravidar? Se quiserem, que paguem uma laqueadura ilegal. Aliás, engravidar, para muitos, é o castigo e a redenção da mulher má, como está lá escrito em I Timóteo 2:14-15: “E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, se permanecer com modéstia na fé, no amor e na santificação.” Há quem leve isso ao pé da letra, e, claro, há aqueles ensandecidos que creem veementemente que mulheres engravidam para poder abortar... Enfim, como são as mulheres as que mais se esterilizam, trata-se de mais um mecanismo de controle sobre os nossos corpos.
O que me deixa um pouco preocupada é que as pessoas comecem a imaginar culpa da mulher, ou do seu companheiro, em relação ao ocorrido. Pessoal, o que está caracterizado é um desrespeito ao direito assentado em lei de interrupção de uma gravidez que coloca em risco a vida da mãe. Houve quem ponderasse que da mesma forma que ela não pode se submeter a uma gravidez, muito provavelmente não pode ingerir anticoncepcionais por causa da carga hormonal, ou colocar DIU, mais ainda se submeter a uma laqueadura. Não sei se teremos maiores detalhes, se o caso voltará à mídia, se saberemos se ela morreu ou viveu. O que temos de concreto é que o direito desta mulher foi desrespeitado e que ela foi condenada ao sofrimento desnecessário e, talvez, à morte. Veja que eu não sou contra o direito de uma mulher de morrer no processo de gravidez e parto, caso queira, caso acredite mesmo que é isso o melhor, que acredita em um milagre. O fato é que nenhuma mulher deveria ser obrigada a levar uma gravidez adiante ou interrompê-la caso não deseje. Simples assim. Neste caso, garantido pelo código penal.
Hoje, uma das questões que o SUS vem enfrentando são os pedidos de reversão de cesariana. E qual o motivo? Mulheres que engravidaram cedo, na adolescência até, tiveram seus dois filhos, geralmente, e de comum acordo com o companheiro decidiram se esterilizar. Porque, bem, vasectomia ainda é meio tabu e mulher é que tem que ser castrada mesmo, não importa se a operação é de médio risco, enquanto uma vasectomia é coisa bem mais simples. Daí, passam-se os anos, e o casamento acaba. Esse homem segue sua vida, procriativa inclusive, e a mulher entra em outro relacionamento. O novo companheiro ou deseja ser pai, ou a mulher quer lhe “dar um filho de presente”. Sim, mulheres são pressionadas a fazer essas coisas, culturalmente, casamento exige filhos e, não raro, as pessoas não identificam nos filhos de outros parceiros ou mesmo na adoção uma forma de compor uma família como outra qualquer. Precisa ser “sangue do seu sangue”. Tive uma amiga dos tempos de escola, que fez uma cesariana aos vinte anos. Tinha dois filhos, não queria usar nem anticoncepcional (*pois engorda...*) ou camisinha (*pois corta tesão...*) e lá de acordo com o marido se esterilizou. Eu perdi contato com ela faz tempo. Achava o sujeito com o qual ela se casou um traste (*mal educado, machista, ciumento, provavelmente violento*) e me sentia mal de ver como as coisas na vida dela desandavam e os efeitos daninhos sobre o resto da família, especialmente a mãe da minha amiga, uma das pessoas mais legais que já conheci na vida. Mas disse para ela com todas as letras “Fulana, e se seu casamento acaba? E se você desejar ter outros filhos? Você só tem 20 anos!”. Para ela, estava tudo muito bem. Eu nada mais tinha a dizer sobre o caso. Não me espantaria ver essa amiga em uma matéria sobre mulheres tentando reverter laqueadura qualquer dia desses.
Lá nos comentários do post da Lola, houve quem culpasse o marido, perdendo de vista o desrespeito primeiro com os direitos constitucionais da moça, por não ter feito vasectomia. Daí, alguém veio e disse “E se acaba o relacionamento e esse homem quer ter filhos com outra mulher?”. A graça é que nunca vi ninguém verbalizar isso no caso da mulher, afinal, que esposa seria essa de pensar em separação e ter filhos com outro homem? Mas eu já ouvi de um colega de trabalho com quatro filhos coisa semelhante. Isso foi no meu primeiro emprego em Brasília. O sujeito, professor, disse que a esposa, que era bem baixinha, enquanto ele era alto, sofria muito com os partos, que tinha feito três cesarianas, que não se dava com anticoncepcional, e que, bem, teria que fazer outra operação para “ligar as trompas”. Eu prontamente falei – afinal, o homem estava sendo tão aberto em relação à questão – “por que você não faz vasectomia?”. O sujeito pulou logo e disse “E se eu quiser ter outros filhos? E se ela morrer ou eu largar dela? (*não ela largar o cara, vejam bem...*) O problema quem tem é ela, não eu.”.
Veja, que esse egoísmo, verbalizado assim dessa forma bem franca, seria inaceitável em uma mulher. Em um homem, bem, pode ser relevado... Recentemente, um colega de trabalho, também professor, se submeteu a uma vasectomia pela rede pública. Ele tinha dois filhos e achava que, se a esposa teve as crianças, ele poderia fazer a esterilização ao invés de obrigá-la a outra operação. Foram meses de processo. Entrevista com junta de psicólogos, médicos, psiquiatra. Sozinho, com a esposa, ela em separado. Vários documentos que precisavam ser autenticados, coisa que saiu caro, e por aí vai. As piadinhas... A operação foi fácil, mas até chegar lá... Percebem que a coisa não é simples, nem rápida? Que quando um juiz dá uma sentença destas ele só quer punir, torturar, matar? Que culpar o companheiro da moça ou isentá-lo com o “ele pode querer ter filhos com outra”é compactuar com a sentença ou com uma sociedade machista que aceita, sim, que um homem possa usar uma mulher e descartá-la por um motivo qualquer. E ter filhos biológicos, esterilidade de um dos cônjuges, para mim, não é motivo legítimo para dizer “o amor acabou”, pode, sim, se a gota d’água de outros problemas.
Por fim, termino contanto dos meus pais. Meu pai pressionou minha mãe a se esterilizar lá nos anos 1970. Minha mãe teve dois partos difíceis. Eu quase morri ao nascer, já no parto do meu irmão, minha mãe quase morreu. Meu pai queria a laqueadura durante o parto do meu irmão. A lei na época exigia três filhos e minha mãe recusou não por não querer burlar a lei, mas porque poderia ser outra menina e ela queria tentar de novo um menino... Ouvi minha mãe dizer várias vezes que queria ter mais filhos, ela queria adotar, meu pai nunca quis. Ela é adepta da filosofia do “onde comem dois, comem dez”. Cada vez que minha mãe reclamava, ele dizia que não queria perdê-la, de que não adiantaria nada ter mais um filho e vê-la morrer no processo. Para o meu pai, tenho certeza de que tanto fazia ter duas filhas, dois filhos, ou um casal, ele queria minha mãe viva e bem. Posso ter dúvidas de muitas coisas, mas não tenho dúvidas do amor que meu pai tem pela minha mãe. Já minha mãe, bem, apesar de nunca ter nos discriminado por questões de gênero, nunca mesmo, de ter brigado com meu pai e com outras pessoas quando percebia algum discurso preconceituoso (*ela teve muita influência sobre mim, acreditem*), não sei se se fossem dois meninos, ela arriscaria um terceiro filho para ter uma menina. Talvez arriscasse, vai saber? Nunca perguntei. Mas eu agradeço o bom senso do meu pai, ainda que tenha se imposto à vontade da minha mãe, porque a conhecendo, ela poderia, sim, ter morrido no processo.
De qualquer forma, escrevi isso tudo, e nem sei se com sucesso, e da forma correta, para pontuar que o que está em jogo é a vida e os direitos de cidadania de uma mulher. Entrar no mérito da culpa do companheiro é leviano e perder de vista que, culturalmente, somos pressionados a ter certos comportamentos. Dentro desse contexto, admite-se que um homem possa, com filhos ou sem filhos, falar que pode se casar de novo e usar isso como desculpa para não fazer uma vasectomia para ajudar a companheira, mas que o contrário raramente é aceitável. Espera-se que as mulheres se sacrifiquem pelo marido, pelos filhos, pelo bem da família. Por conta disso, o Brasil é recordista em laqueaduras, assim como em cesarianas. É triste, mas vivemos sobre a égide da maternidade compulsória. Maternidade não pode ser destino ou punição, precisa ser escolha. Direitos constitucionais não podem ser negociados, uma mulher não pode ser condenada à morte, porque, bem, engravidou de novo.