Algumas questões que deixei de fora do meu primeiro post sobre o caso da moça do AKB48 e outras reflexões sobre a questão me obrigam a escrever mais um post (*espero, o último*). A Tabby-chan me perguntou, por exemplo, se as feministas japonesas se manifestaram. Imagino que algum grupo tenha. Procurei alguma matéria em inglês e nada encontrei. Se alguém tiver e puder deixar link nos comentários eu agradeço. No dia 2 de fevereiro, Minegishi Minami, a moça que raspou a cabeça, compareceu a um evento de aperto de mãos do AKB48 e se desculpou novamente.
Segundo o Tokyohive, ela se curvou por mais de 15 segundos e pediu perdão aos fãs dizendo que gostaria de conseguir recuperar a confiança de seus fãs e, claro, seu lugar de volta. E que estava recomeçando. Vejam bem, cortar cabelo é ritual de recomeço. Ela agradeceu pela compreensão dos fãs. Alguns fãs, segundo a notícia, pediram que o vídeo fosse tirado do Youtube. Creio que Mii-chan, como a moça é chamada, estava sendo sincera quando raspou a cabeça. Vejam bem, continuo achando que a atitude inicial foi tomada por impulso (*tendo como base mil referências culturais motivadoras, claro*), mas nada impede os empresários do AKB48 de lucrarem com isso. Quantos eventos ainda teremos com essa moça se desculpando? Outro vídeo, talvez. Em nenhum momento, estão questionando o controle sobre a vida pessoal dessas idols, simplesmente, estão reforçando que ela traiu os fãs, mas se arrependeu e deseja ser perdoada/amada/venerada de novo. Todo o sistema que se sustenta no controle do livre exercício da sexualidade está de pé, todo o estímulo aos fãs otakus doentios e endinheirados, também. Negócios são negócios.
Alguém nos comentários afirmou que estava sendo preconceituosa com os otakus. Não. Pre-conceito é montar uma imagem antecipada de alguma coisa. Com tantos anos de estrada nesse fandom de anime e mangá, só na net estou desde 1999, eu conheço bem esse tipo de otaku. E é um tipo de otaku, coisa que fiz questão de deixar claro. Que o AKB48 tem mais fãs do que esse grupo de pressão, eu bem sei, ou não colocariam mangá do grupo na Nakayoshi, o que não torna esse sistema de idols melhor ou anula a violência de gênero explícita nesse caso. Esse tipo de grupo serve para vender essa erotização da inocência para meninas de colégio. E isso, me preocupa, também. Só que é conscientemente um xamariz para esse tipo de otaku descrito acima e seus empresários sabe bem disso.
Falando nisso, hoje, por acaso, meu marido estava assistindo um episódio do anime do grupo. As meninas não são desenhadas peitudas e têm um ar bem juvenil, tentando seguir o modelo original. Quadris estreitos, seios pequenos, traços pendendo para o pré-adolescente. Há inclusive a personagem inspirada em Minegishi Minami. Lá pelas tantas, há uma sessão de fotos na praia e com biquíni. Duas meninas estão sendo fotografadas por uma mulher que pede que elas se agarrem, e rocem uma na outra e coloquem um clima mais sexy. As duas, muito sem graça, obedecem. Se você acha que este material é para atrair meninas de 11, 12 anos, desculpe, você está errado. Esse anime tem como seu maior alvo esse público otaku masculino específico, que se apropria de coisas feitas para criança, como Precure (プリキュア), e invade eventos infantis provocando ansiedade em mães, pais, promotores de eventos e menininhas. Vocês acham que estes dakimakura (* travesseiro de 1,50m*) são para as meninas fãs da série (*1-2-3*)? Pare de se enganar, a cultura lolicon está fortemente infiltrada em todo lugar. Aquele sujeito com recursos para gastar obsessivamente com seu hobby sabe que as empresas vão inundar o mercado com produtos que atenda o seu gosto e alimente seus desejos. No entanto, esse comportamento das personagens no anime manda também mensagem para essas meninas do que pode ser sexy ou aceitável para conseguir a atenção.
Passeando por aí, achei uma matéria com trechos traduzidos de uma entrevista com Kashiwagi Yuki, uma das AKB48 mais populares. Lá, ela fala da tal “lei” que bane relacionamentos amorosos: “Como me entrei para o AKB48 quando estava no 9º ano [*13 ou 14 anos*], nunca tive dúvida sobre o conceito. É completamente natural para mim. (...) Se nós entrarmos em um relacionamento amoroso, eu imagino que o sentimento de apoio dos fãs irá enfraquecer. Relacionamentos, vida privada e liberdade. Eu abri mão dessas coisas para me devotar ao AKB48, porque eu tenho esperanças e sonhos que eu quero realizar e eu gostaria que os fãs prestassem atenção a essas coisas e nos apoiassem apenas tentando fazer isso. (...)Para unificar todas as mentes, a ‘lei que bane o amor’ é necessária. (...) Depois refletir muito, pensando diferentes coisas, eu já cheguei a conclusão de que idols são aqueles que sempre coloca, seus fãs em primeiro lugar, pensando no que eles podem fazer para agradar os fãs."
Tradução da tradução nunca é boa coisa, mas vocês podem ter uma idéia: 1. Ela não falaria nada sem autorização dos empresários; 2. Ela cresceu dentro do AKB48, era uma menina quando entrou e não conhece muito fora dele; 3. Essa história de servir e agradar os fãs/clientes pode ser rastreada dentro da cultura japonesa em outras ocupações com certo prestígio, como a de gueisha; 4. Essa doutrinação lembra muito aquela que é feita dentro de certas seitas e grupos religiosos; 5. Não há muita oportunidade de carreira para as mulheres japonesas (*matéria recente aqui*), ainda mais uma que traga reconhecimento, mesmo que às custas da abdicação da vida privada; 6. Ninguém assina contrato com 13 ou 14 anos sem que o responsável opine. Há quem acredite que um adolescente de 13 anos "saiba tudo da vida", mas aqui ou no japão, são somente seres humanos que precisam amadurecer muito e tem pouquíssima experiência de vida.
É diferente no Ocidente? Sim, mas os mecanismos de erotização precoce e de controle da sexualidade estão aqui, também, assim como a disposição de pais e mães em sacrificarem seus filhos pensando em um futuro melhor para eles e si mesmos. Meninos de 10 anos tem o passe comprado por clubes de futebol. Meninas de 11, 12 anos participam de seleções de modelo. Tempos atrás, um dos responsáveis por uma das grandes agências de modelo do Brasil relatou que muitas mães falam sem problema que se precisar, a menina emagrece cinco quilos em uma semana, que ela consegue. Será que haveria muita reserva em colocar essa criança em uma situação de risco de pedofilia ou prostituição? Será que são somente os pais japoneses que permitem que suas filhas façam sessões de foto para esses adeptos de lolicon? Reflita um pouco.
A Gabi N., deixou escrito isso aqui nos comentários “Elvis arrebatava corações pelo mundo, Madonna sempre foi provocante, Michael Jackson dançava de forma insinuante. Só que numa mentalidade ocidental, NINGUÉM ESPERAVA QUE NENHUM DELES FOSSE CASTO OU PURO.”. Só que Gabi, os três exemplos citados eram de pessoas adultas (*OK, MJ começou muito cedo, mas veja que não foi muito feliz*) e muita coisa mudou dos anos 1980 para cá. Quem vê imagens do Show da Xuxa na Manchete ou na Globo pode se pegar pensando em como uma moça com shortinhos e tops daqueles apresentava programa infantil, mas era comum. Que criancinhas no início dos anos 1990 dançavam na boquinha da garrafa em programa vespertino dominical. A erotização continua grande, mas colocaram limites a determinadas situações explícitas, ou seja, os mecanismos de controle mudaram.
Há quem ache que Bruna Marquezine fazendo a periguete na novela das nove é pedofilia, mas esquecem que ela tem 17 anos. Erotização, super-exposição, mas ela está sendo vendida como mulher. É algo muito diferente do que é vendido no Japão como erótico. A objetificação das mulheres é a mesma, mas Marquezine, mesmo em um Brasil, tem um leque de opções de carreira muito maior do que a da média das moças japonesas. Ser idol é sonho e pesadelo. Mas vivemos, sim, no Ocidente, um backlash que erotiza e, ao mesmo tempo, propagandeia pureza e castidade. O que são os “purity ring” americanos que os atores adolescentes da Disney muitas vezes usam ou são obrigados a usar? E o programa True Love Waits (Quem ama espera)? Conhecem? E o lenga-lenga entre Edward e Bella? Tudo muito erotizado, mas sem sexo. Ou o culto das Princesas e dos Príncipes?
Eu procurei loucamente a imagem de uma camiseta desses grupos religiosos que dizia “Sou tão sexy que posso fazê-lo esperar”, ou algo do gênero. A moça pode fazer o rapaz esperar, ele é o ativo, ela o alvo. Daí, vocês tiram o nível de vulgaridade desse tipo de movimento que surgiu em 1995, era custeado pelo governo norte americano, e ganhou notoriedade. Milhares de jovens nos EUA, principalmente, participam de cerimônias públicas nas quais juram se manter virgens até o casamento. Lembro que quando ouvi falar pela primeira vez desse movimento, conversei com uma amiga na Igreja, eu tinha menos de 20 anos, e disse que isso era invasão de privacidade, que a vida sexual de uma pessoa só a ela interessava. Ela discordou, achou que o movimento estava certo, que era preciso enfatizar “valores”. Obviamente, isso não melhorou a qualidade da educação sexual recebida nas escolas norte americanas, mas fez surgir uma geração que não se sente confortável para falar de sexo, mas que fala de sexo o tempo inteiro com seus silêncios e práticas de cerceamento.
Por conta de coisas como o True Love Waits, temos situações como as diagnosticadas pela historiadora americana Dagmar Herzog: “O maior problema tem sido a perda de poder das meninas. Se numa escola se usa um par de tênis sujos e gastos como símbolo de virgindade perdida, é claro que quem se sente mais fraco e vulnerável são as meninas. Há 20 anos eu dou aulas de história da sexualidade para jovens universitários e vejo uma grande mudança. As jovens não estão mais confortáveis, confiantes sobre o que querem ou não fazer. A confiança foi danificada e precisa ser recuperada. Mesmo as congressistas democratas passam por momentos difíceis porque ninguém quer falar publicamente sobre sexo.” Seria ruim de qualquer forma, no entanto, se não houvesse uma dupla moral, seria tão doloroso perder a virgindade para um menino ou uma menina, mas não há igualdade de gênero, logo, as impuras, as vadias, os “tênis sujos e gastos” geralmente são as meninas.
Ainda falando de Disney, uma das coisas que estão sendo discutidas em vários sites e blogs é o chamado “new look” das princesas. Olhar lânguido, um ar ligeiramente sensual (*nada que excite um fã de anime, imagino*), cintura mais marcada, e seios ligeiramente maiores. Estava comparando as imagens da Cinderella – a mais popular das princesas (*não sei eu por qual motivo*) –, da aurora (*Bela Adormecida*) e da Bella. Elas estão mais bonitas? Sim. Muitos adultos gostaram? Sim. Só que o público alvo da linha princesas são menininhas de, sei lá, 0-9 anos por aí. Exagero de feminista? Pare e reflita sobre qual o objetivo desse makeover, dessa transformação, e qual seu sentido pedagógico para uma menininha. A Lola já falou várias vezes do livro Cinderella ate my daughter, de Peggy Orenstein, e eu recomendo. A análise é rica e expõe algo que a psicóloga Olga Carmona apontou a da naturalização desde muito cedo na cabeça das meninas do seu papel de objetos sexuais. Hiper-sexualizadas, mas impedidas até a adolescência e, talvez, além até, de fazerem sexo. Trata-se de um jogo perverso.
Pensem que nos EUA há estados que querem elevar cada vez mais a idade de consentimento. O objetivo não é proteger os jovens, mas controlar o livre exercício da sexualidade, impondo um padrão de abstinência oriundo dos círculos cristãos fundamentalistas a toda a sociedade. Não consigo convencer, vou impôr. O adulto transgrediu, e pode ser o rapaz/moça de 18 anos com um menor de 16, a depender do lugar. Cadeia. A rapidez em penalizar namorados, às vezes, é mais rápida do que a de punir estupradores. Cuidado, que o discurso de muitos congressistas anti-pedofilia é muito nessa linha. Pedofilia é atração por crianças. A lei define a idade de consentimento no Brasil em 14 anos. Por causa disso não deixa de existir estupro, corrupção de menores e outros crimes, simplesmente, o/a adolescente está livre para fazer sexo consensualmente com quem quiser. Eu posso até achar cedo, mas cabe aos responsáveis a orientação, e, não, na sua incapacidade ou irresponsabilidade, pressionar o Estado para que crie leis muito dúbias.
Voltando aos anéis de pureza e tudo mais, não me surpreende que muitos desses ídolos americanos surtem quando chegam no limiar da idade adulta. Que queiram se reinventar e, ordinariamente, mudem seu modo de vestir, apareçam com drogas e bebidas alcoólicas, tentem passar uma imagem hiper-sexualizada que quebre com tudo o que lhes foi exigido por anos. Tudo isso é altamente destrutivo e não garante o sucesso de ninguém, mas expressa o despreparo e o desespero de muitos deles. Muitos desses meninos e meninas começaram muito cedo, assim como as AKB48 e não fizeram a maioria das suas escolhas de carreira. Só que a fabricação em série desses ídolos juvenis norte americanos é diferente, assim como a forma de administrá-los. No Japão, o sentido de grupo, de dever, a disciplina parecem maiores. Não há, também, a diretriz religiosa fundamentalista cristã norteando o conceito de pureza. E, claro, ainda que existam fãs fanáticos no Ocidente, eles não têm um comportamento grupal organizado como o dos otakus hardcore japoneses, tampouco o seu poder de compra e de pressionar a indústria.
Sim, eu acredito que o fã otaku de AKB48 seja muito mais daninho que as fãs adolescentes de Justin Bieber ou as adoradoras e adoradores de Bella e Edward. Kristen Stewart já sacudiu a poeira e deu a volta por cima. Perdeu fãs, ganhou fãs, continua rentável, basta ter cabeça para administrar sua carreir. Pode ser que Minegishi Minami consiga o mesmo, talvez, dentro do próprio AKB48, mas todo esse sistema de idols que se intromete na vida privada dessas meninas persiste. Houve quem comparou o caso de Minegishi Minami ao da moça do Pânico na TV. Olha, Babi Rossi não precisava raspar o cabelo, se se demitisse conseguiria se inserir em outro lugar rapidamente, seria apoiada pela sua coragem, como foi deplorada por ter cedido. No fim das contas, cortar-lhe os cabelos foi uma brincadeira de mau gosto, talvez pudesse até configurar crime, mas não tem o mesmo significado do da moça do AKB48, ou do que é cortar ou raspara a cabeça no Japão como forma de pedir perdão assumindo que se falhou.
Ser parecido, não é ser igual. Objetificação das mulheres, o backlash em relação ao sexo, a erotização de produtos infantis, a capacidade dos pais de sacrificarem suas filhas e filhos em busca de um contrato valioso, existe em muitos lugares. Agora, o tipo de fã raivoso, obcecado por uma falsa imagem de pureza e virgindade que vê na idol sua namorada imaginária, só existe em bando em um único lugar, o Japão.
P.S.: Recomendo o texto do Mais de Oito Mil. A Mara escreveu um belo texto sobre o assunto.
P.S.: Recomendo o texto do Mais de Oito Mil. A Mara escreveu um belo texto sobre o assunto.